Viomundo – Em reportagem do G1 no sábado, os camponeses são chamados de fazendeiros. Por favor, explique aos leitores do Viomundo quem são os “fazendeiros” apoiadores do presidente deposto, Miguel Zelaya?
Heloisa Villela – Puxa vida, isso me chamou muito a atenção. A palavra fazendeiro dá a entender que são ricos, donos de muita terra ou algo assim. Se você visse como é essa gente… Como estavam vivendo dentro daquele Instituto… É gente muito simples, que tem um pequeno lote de terra para plantar feijão e milho, que se organiza em cooperativas, etc. Um deles acabou ficando meu amigo, Don Lourenzo, um senhor que vive em Bonito Oriental, tem 11 filhos e uma área de 113 manzanas (196 acres). Ele me contou que trabalha com o movimento social desde 84. Foi vigilante da fronteira – o exército esperava que ele barrasse as trocas comerciais com salvadorenhos. Mas ele fazia de conta que estava do lado das autoridades e deixava passar tudo pela fronteira. Um tio dele fugiu da área quando foi considerado traidor, pelo governo, porque dava água e comida aos refugiados salvadorenhos que conseguiam cruzar a fronteira. Pois bem, volta e meia ele aparecia no hotel, de manhã, acho que para poder fazer uma boa refeição. Ele disse que se o Zelaya não voltar, ele provavelmente vai boicotar as eleições. Muito gente fina o Don Lourenzo. Tenho certeza que ele ainda tinha muita história boa para contar.
Viomundo – Pelo que você nos contou na outra entrevista, os camponeses presos no Instituto Nacional estavam lá para defender os títulos de terra. Qual o medo deles?
Heloisa Villela – Eles me disseram que o medo era de que o governo golpista tomasse posse das terras do estado e repartisse entre os amigos. Além do que, muitos que estão trabalhando e cultivando os mesmos lotes há tempos, não têm o título de propriedade. Ou têm, mas temiam perdê-lo. Como em qualquer lugar do mundo, é fundamental a relação do homem com a posse da terra.
Viomundo – Fala-se em centros de tortura lá. Existem mesmo?
Heloisa Villela – Depois de três dias procurando, com a ajuda de Don Lorenzo, encontrei Ramon Navarro, líder da liga campesina, que aparentemente fez a denúncia. Ele me disse que ouve algum ruído na comunicação. Ele não falou em centros de tortura mas em alguns casos. E me explicou que, no momento, está muito difícil fazer com que os torturados conversem com a imprensa porque as famílias estão sob ameaça de morte. Ramon Navarro prometeu voltar a falar comigo e me apresentar alguns homens que foram torturados, assim que as famílias deles forem para lugares mais seguros.
Viomundo – Já se tem ideia do número de pessoas mortas pelo governo Micheletti?
Heloisa Villela — Após a volta de Zelaya ao país, são três. Mas desde o começo do golpe, há 100 dias, fala-se em mais de 100. Não tenho provas disso. Fui ao enterro da universitária de 24 anos, Wendy Elizabeth, a última vítima do movimento golpista. Aparentemente, a exposição às bombas de gás detonou uma bronquite da qual ela não conseguiu se recuperar. Vi também os túmulos dos outros dois mortos nos últimos 15 dias.
Viomundo – O povo tem medo dos gorilettis?
Heloisa Villela – Os que estão na linha de frente das manifestações e os que estavam acampados no Instituto Agrário, sim. O povo em geral, não. Eles reclamavam muito do estado de sítio, da situação em que o país se encontra, da falta de respeito à democracia.
Viomundo – O fechamento da rádio Globo e canal 36 foi um golpe às liberdades democráticas. O povo estava mesmo ligado nelas?
Heloisa Villela – Muito. Imagine um país sob golpe de estado, toda a imprensa comprometida com os golpistas – afinal, os empresários fizeram parte do golpe – e uma rádio e uma tevê contando tudo o que está acontecendo, denunciando os abusos, avisando onde vai ser a próxima manifestação, dando os informes a respeito do que está se passando nos demais distritos do país… O povo não gostou nem um pouquinho…
Viomundo – Na manifestação de quarta-feira passada que pedia a reabertura da rádio Globo, a polícia lançou bombas de gás lacrimogênio e andou distribuindo cacetadas. Eles tinham noção da presença da imprensa estrangeira?
Heloisa Villela – Totalmente. Não houve truculência, pancadaria, pelo menos nesta manifestação. Houve um exagero, uma necessidade, de demonstrar força, para ver se no dia seguinte a manifestação seria menor. Os policiais lançaram umas 7 ou 8 bombas de gás. O porta-voz da polícia estava do meu lado, junto com o batalhão; ele me deu conselhos de como fazer para não ficar com o olho ardendo demais. Não existe um ódio dos policiais em relação aos manifestantes. É quase um teatro, um jogo. Cada um fazendo o seu papel. Não chega a ser, na minha opinião, nada parecido com as pancadarias que vimos durante os golpes militares na América Latina, entende?
Viomundo – E a igreja católica não tem feito nada para evitar as arbitrariedades, torturas?Heloisa Villela – Existem sempre aqueles padres mais dedicados aos pobres, pastoral da terra, etc. Mas, pelo que eu soube, a igreja católica de Honduras, ao menos a cúpula, estava empenhadíssima em garantir o direito dos ricos ao visto americano. Essa é a grande preocupação dos empresários: poder passar o fim de semana em Miami…
Viomundo – Que impressão você levou do povo hondurenho?
Heloisa Villela – Achei o povo muito simpático, simples e com um quê de ingenuidade. Não sei explicar direito, mas eles me pareceram um pouco despreparados ou sem malícia suficiente para lidar com a situação política que estão enfrentando. Por outro lado, eles são tinhosos, tenazes e dizem que o povo do interior é ainda mais aguerrido. Gostaria muito de ter tido tempo para viajar e conhecer o resto do país.
Viomundo – Na quinta-feira, os deputados federais Roberto Jungman (PPS-PE), Claudio Cajado (DEM-BA), Bruno Araújo (PSDB-PE), Maurício Rands (PT-PE), Ivan Valente (PSOL-SP) e Janete Pietá (PT-SP) estiveram em Tegucigalpa. Conversaram com parlamentares locais, com o presidente deposto e Manuel Zelaya. No final, os quatro primeiros se reuniram durante quase duas horas com Roberto Micheletti. Esse encontro fazia parte da agenda?
Heloisa Villela – Não. Por isso mesmo os deputados Ivan Valente e Janete Pietá se recusaram a participar. Os dois ficaram irritadíssimos, pois o encontro não estava previsto e que não era o combinado. Testemunhei os seis parlamentares no elevador discutindo, mas o Ivan e a Janete não conseguiram convencer os outros. E acabou acontecendo aquele encontro.
Viomundo – Eles viram que você estava no elevador?Heloisa Villela – O Raul Jungman, do PPS, percebeu que o cinegrafista da Record, Joaquim Leite Neto, estava gravando, e só dizia assim: “Ivanzinho, por favor”. E o Ivan balançava a cabeça.
Viomundo – Na matéria que foi ao ar no JR, a imagem que me marcou foi a do Micheletti e dos parlamentares rindo. Foi esse mesmo o clima do encontro? Os quatro apertaram a mão manchada de sangue do Micheletti?
Heloisa Villela – O tom amistoso e a troca de gracinhas foram irritantes. Não houve cobrança e sim bate-papo. Perguntei ao Micheletti se a presença deputados brasileiros significava um reconhecimento do governo. Ele disse que os parlamentares não tem esse papel, mas completou: “Espero que eles me ajudem”. Eles não só apertaram a mão do Micheletti como posaram para foto, todos juntos.
Viomundo – Como eles defenderam a visita ao Micheletti?
Heloisa Villela – Que graças à visita ao Micheletti, eles conseguiram a garantia de que a integridade da embaixada brasileira jamais será violada. Isso não é correto. Essa garantia já havia sido dada, por Micheletti, há dias. Eles também disseram que, na conversa, pediram que as linhas de telefone da embaixada fossem restabelecidas e que o golpista prometeu fazer o favor. Nossa… que favor!
Viomundo – É verdade que o encontro foi regado a vinho e comidinhas?
Heloisa Villela – Infelizmente, é. Na hora acabou o encontro, eu disse ao Mauricio Rands, que tinha sido informada há poucos minutos da provável transferência dos camponeses para um presídio de segurança máxima, onde some muita gente. E perguntei como ele se sentia ao apertar a mão do representante do governo que estava fazendo isso. Ele não respondeu. Não se referiu a direitos humanos, direitos civis, nada. Ficou apenas repetindo o discurso ensaiado de véspera. E pior. Disse que a OEA vai negociar também com os golpistas. Quando comentei que a OEA tem mandato para isso, ele saiu sem dizer mais nada. Uma decepção…
Viomundo – Na sua permanência em Honduras, qual o acontecimento que mais te chocou?Heloisa Villela – Nada me chocou mais do que esse encontro dos deputados brasileiros com o Micheletti. Nem o cerco policial e militar à embaixada brasileira. Na verdade, uma barricada humana, que fica ali dia e noite. A grande maioria deles, meninos de 18 a 20 anos que vem do interior para garantir um sustento trabalhando na polícia e nas forças armadas. Aposto que muitos estão com o Zelaya. O Tenente Molina, porta-voz da polícia, disse abertamente que está com o presidente Zelaya. Mas ver nossos representantes fazendo aquele papelão, para jogar para a platéia no Brasil ou tentar com isso criticar o governo brasileiro, que não negocia com golpistas, realmente me deixou superchocada. Confesso, tremia de raiva na hora que fiz a primeira pergunta ao Rands.
Viomundo – Você esteve frente a frente com o Micheletti. Que impressão ficou?
Heloisa Villela – A impressão que tive foi a que já tinha antes de ir para Honduras. Ele pode ser alto, baixo, gordo, magro, jovem, idoso. Não importa. É um político que sempre desejou a presidência e nunca chegou lá pelo voto. Agora que usurpou o poder, não quer largar o osso. Se conta piada ou é carrancudo, não faz a menor diferença. Ele, agora, é apenas isso: o chefe da gangue que deu o golpe de estado em Honduras.